A 24ª Conferência Nacional da Advocacia, maior evento jurídico da advocacia, foi palco do lançamento da coletânea “É Tempo de Esperança Garcia”. O livro que homenageia a primeira mulher reconhecida advogada no Brasil, contou com a participação de mais de 60 autoras negras, como a Advogada Silvia Constantino. Para a advogada sul-matogrossense, o livro é uma conquista.
“Em minha participação, trago um recorte sobre a mulher negra ser vista apenas como um objeto de desejo, a objetificação da mulher. No artigo, apresento um caminho para que se desconstrua esse estigma, e que o desafio dessa desconstrução é a busca pelo conhecimento”, explicou Silvia Constantino.
A advogada e co-autora, destaca também que a obra tem como missão ressaltar a representatividade da mulher negra na escrita, bem como sua intelectualidade para a sociedade, além de oportunizar ainda mais o conhecimento sobre Esperança Garcia e sua importância para a advocacia do Brasil.
Para o presidente da OAB Nacional, Beto Simonetti, o lançamento da obra em homenagem à Esperança Garcia, durante o maior evento jurídico da advocacia, “é mais um compromisso da gestão com essas pautas tão necessárias, que são as questões de gênero com ações afirmativas e as questões de raça”.
Organizada pela Comissão Nacional da Mulher Advogada, além do artigo da advogada Silvia Constantino, a coletânia conta com artigos de Advogadas Presidentes e membras de Comissões de todo o Brasil. A obra foi coordenada pelo Presidente da OAB Alberto Simonetti e Cristiane Damasceno e organizada pela Ana Paula Araújo de Holanda, Rejane da Silva Sanchez e Sinya Simone Gurgel Juarez.
Para a presidente da CNMA, Cristiane Damasceno, o objetivo da publicação é eternizar o trabalho de mulheres, pois o que é escrito, fica para sempre, nada se apaga. “Precisamos enaltecer o trabalho das mulheres, que muitas vezes são invisibilizadas. Temos muitas mulheres advogadas e juristas pretas e pardas extremamente talentosas”, acrescentou.
Esperança Garcia
O ano era 1770 e uma mulher negra, mãe, escravizada, escreveu uma carta em 6 de setembro, endereçada ao governador da capitania do Piauí. Em ato de insurgência às estruturas que a desumanizavam, ela denunciava as situações de violência que ela, as companheiras e seus filhos sofriam na fazenda de Algodões, região próxima a Oeiras, a 300 quilômetros da futura capital, Teresina.
O documento histórico é uma das primeiras cartas de direito que se tem notícia. É um símbolo de resistência e ousadia na luta por direitos no contexto do Brasil escravocrata no século XVIII – mais de cem anos antes de o Estado brasileiro reconhecê-los formalmente.
Esperança Garcia possivelmente aprendeu a ler e escrever português com os padres jesuítas catequizadores. Após a expulsão dos jesuítas do Brasil, pelo marquês de Pombal e a passagem da fazenda para outros senhores de escravo, ela foi transferida para terras do capitão Antônio Vieira de Couto. Longe do marido e dos filhos maiores, usou a escrita como forma de luta para reivindicar uma vida com dignidade.
A carta foi encontrada em 1979 no arquivo público do Piauí, pelo pesquisador e historiador Luiz Mott. Em reconhecimento da importância histórica do documento escrito por Esperança, atendendo às reivindicações do movimento negro no Piauí, a data de 6 de setembro foi oficializada como o Dia Estadual da Consciência Negra, em 1999. Em setembro de 2017, duzentos e quarenta e sete anos depois da escritura da carta, através de solicitação da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra do Piauí, Esperança Garcia foi reconhecida pela OAB/PI como a primeira advogada piauiense.
A narrativa de Esperança é marcada pela indignação e a coragem de resistir. Denuncia os maus tratos, o autoritarismo e requer o direito de viver livre de violência para si e para os outros. É uma singular expressão da luta por direitos humanos que nasce das senzalas, das ruas, dos lugares onde as sujeitas historicamente oprimidas se insurgem por liberdade e igualdade.
Conhecer, lembrar e compartilhar a voz de Esperança Garcia é um imperativo para a luta contra o racismo e por igualdade de gênero, raça e classe no Brasil. É também alimento para a força e coragem de resistência do povo brasileiro ao perigo de uma única história, a do colonizador. É peça fundamental para compor as memórias de luta e resistência do povo negro e construir as caixas amplificadoras de vozes historicamente silenciadas.
Em novembro de 2022, o Conselho Pleno da OAB Nacional reconheceu Esperança Garcia como a primeira advogada brasileira, com a inauguração de um busto na sede da OAB Nacional.
*Com informações da OAB-MS, OAB Nacional e do Instituto Esperança Garcia.
Olga Cruz