Chegou à relatoria da desembargadora Jaceguara Dantas da Silva apelação cível em que uma mulher buscava indenização por supostos danos materiais, morais e estéticos decorrentes de suposto erro médico durante o parto. O episódio ocorreu no ano de 2013 em um hospital particular de Campo Grande. A sentença havia considerado a ação improcedente porque não houve comprovação, no curso do processo, de que a paralisia cerebral incapacitante do menino era uma consequência do mau atendimento dos obstetras.
Ao analisar o recurso, em fevereiro de 2023, a magistrada do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul não se conformou. Jaceguara considerou que não cabia condenação por erro médico, mas era evidente a violência obstétrica. A autora da ação passou por intenso sofrimento, não foi atendida pelo médico que a acompanhou na gravidez — porque ele se recusou a fazer a cesárea — enfrentou dores intensas e desmaiou quando um dos médicos “subiu também na barriga da autora, concretizando a odiosa manobra de Kristeller, e esta veio a desmaiar”.
A manobra de Kristeller é uma técnica não recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em que o útero é pressionado para acelerar a saída do bebê. Causa muito sofrimento à mulher e pode deixar sequelas na criança. A desembargadora conta que não sossegou até terminar o seu voto, numa sexta-feira à tarde. Em seguida, chorou muito.
É que a decisão trouxe memórias avassaladoras do parto do primeiro filho, Thales, hoje com 25 anos. O jovem é saudável, gradou-se em direito como a mãe e o pai, que é promotor de justiça, e se prepara para a carreira no Itamaraty. Mas o destino do jovem poderia ser bem diferente.
Jaceguara hoje se dá conta de que também foi vítima de violência obstétrica. Seu médico se recusou a acreditar que havia chegado a hora do nascimento do bebê e a deixou sozinha, na sala de parto — enquanto o marido fazia um júri no interior — em intenso sofrimento, sem dilatação, para forçar um parto normal, enquanto ela gritava de dor, com o líquido amniótico secando e o filho já entrando em sofrimento. Estava com o cordão umbilical enrolado no pescoço. “Na época, nem eu, que já era promotora de Justiça, me dei conta de que aquele sofrimento era uma violência obstétrica, que era baseada no gênero. Vivi anos de trauma”, conta a magistrada.
Situações como essa, na visão da desembargadora, reforçam a importância da participação das mulheres nas decisões da justiça, para que o olhar feminino também seja considerado. Ela deu provimento parcial ao recurso e arbitrou uma indenização de R$ 40 mil, dividida entre dois médicos, o hospital e o plano de saúde. “A violência obstétrica está relacionada a procedimentos e condutas adotadas pela equipe médica durante o período gestacional da mulher que impliquem violação à integridade física e psicológica da parturiente, atingindo inclusive aspectos não aferidos diretamente em sua fisionomia. Trata-se de uma espécie de ‘desrespeito à mulher, à sua autonomia, ao seu corpo e aos seus processos reprodutivos, podendo manifestar-se por meio de violência verbal, física ou sexual e pela adoção de intervenções e procedimentos desnecessários e/ou sem evidências científicas'”, registrou a desembargadora em seu voto.
A decisão foi seguida por unanimidade pelos desembargadores — dois homens — da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul e se tornou um precedente importante.
Negra, descendente de indígenas e defensora dos vulneráveis
Quando se trata da desembargadora Jaceguara Dantas, 61 anos, além da visão da mulher, outras minorias nos espaços de poder também são contempladas.
Nascida em Guajará-Mirim, município de Rondônia, Jaceguara — cujo nome significa dona da lua ou loba da lua — é negra e tem ascendência indígena. Ela foi uma das magistradas que recebeu apoio de entidades de direitos humanos para a vaga de ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) aberta com a aposentadoria de Rosa Weber, que acabou sendo ocupada por Flávio Dino.
Jaceguara é uma das duas únicas desembargadoras do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, ao lado de 35 homens. A desembargadora é doutora em direito constitucional pela PUC/SP e mestre em direito do Estado. Também é especialista em direito civil com concentração em direitos difusos e coletivos, pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
No Tribunal de Justiça, atua como coordenadora estadual da mulher em situação de violência doméstica e familiar e como ouvidora auxiliar regional da mulher da região Centro-Oeste, designada em 2023 pela ministra Rosa Weber, como presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Jaceguara foi nomeada desembargadora em fevereiro de 2022, pelo então governador Reinaldo Azambuja (PSDB), em vaga do quinto constitucional do Ministério Público, depois de quase três décadas na carreira. Ela integrou lista tríplice eleita pela classe.
Na experiência no MP, Jaceguara passou pelo júri. O primeiro foi marcante: o de uma mulher que matou o marido com uma facada, em momento de uma briga na cozinha, depois de 20 anos de agressões sofridas. Jaceguara, então uma jovem promotora de Justiça, pediu a condenação. Mas admite que hoje agiria diferente. “É um caso de legítima defesa. Mas eu era uma jovem promotora. Ela foi absolvida e eu não recorri. Admito que não fiquei triste pela absolvição”, conta a magistrada.
A desembargadora cresceu numa família simples. Mas o pai, Gonçalo Elias, militar, fez de tudo para prover a educação dos filhos. Sempre sonhou que a menina fizesse direito e fosse juíza, uma realização que ele não teve tempo de desfrutar. O pai, uma referência na vida da magistrada, morreu há 25 anos.
Ele ensinou a filha que todos os sonhos estão ao alcance de um grande esforço. “Eu sou, eu quero, eu posso”, era o lema do militar. Desde criança, Jaceguara gostava de livros e se deliciava com as aventuras que encontrava nas páginas, já que não tinha condições financeiras de vivê-las no mundo real.
A leitura abriu portas para os concursos e também possibilitou que a desembargadora fosse criadora das próprias obras. Autora do livro Ministério Público e Violência Contra a Mulher: Do Fator Gênero ao Étnico-Racial, publicado em 2018, Jaceguara entrou também no universo infantil. Os Sonhos de Ágatha, livro que trata a questão racial na perspectiva de uma menina negra, é direcionada a crianças.
Foi uma forma de contar a própria vivência, de uma garota que sofreu preconceitos, mas focou nos objetivos. O propósito da autora é incentivar a autoestima das crianças negras e ajudar no processo de aceitação e de enfrentamento da realidade social.
Ela conta que foi várias vezes vítima de racismo: do segurança de olho nos seus movimentos em lojas de grife, a pessoas que não a reconheciam como promotora de justiça e indagavam: “você é a secretária?”
Uma vez, enquanto lia um livro, uma mulher perguntou se ela sabia ler. Jaceguara disse que, na verdade, estava aprendendo francês. Em vez de se constranger com o ato de preconceito, a agressora ficou ofendida com a resposta.
Jaceguara atuou também como advogada nos anos 1980, depois de se graduar na então Fucmat, hoje Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Ela é professora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e uma das fundadoras, em 1989, do grupo Trabalho Estudos Zumbi (TEZ).
Os dois filhos seguem a carreira do direito. Thales se mudou para Brasília para se preparar para a diplomacia e o caçula, Gabriel, 24, está concluindo o curso. Nascida em Roraima, a mãe, dona Leonir, é filha de um português com uma indígena e hoje mora em Campo Grande, para onde a família com sete filhos se mudou quando Jaceguara, chamada em casa de Jace, tinha 11 anos.
Com tantos projetos realizados, Jaceguara pensa no futuro. Colegas acreditam que ela possa ainda chegar a um tribunal superior, o STJ ou, quem sabe, o STF. “Penso que, pela minha origem, já conquistei um patamar satisfatório para uma menina que veio de uma família simples. Mas sempre estou disposta a contribuir. Amo o direito e a justiça”, diz.
Fonte: Correio Braziliense