As denúncias de que o agora ex-ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, teria assediado sexualmente mulheres, inclusive a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, abriram uma grave crise em um campo caro a governos petistas: o da proteção e fortalecimento das minorias.
Em nota oficial, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva anunciou a demissão de Almeida na noite de sexta-feira (6/9), reconhecendo que as denúncias são “graves” e que sua manutenção no cargo era “insustentável”.
Almeida negou as acusações em um vídeo divulgado na quinta-feira (5/9) e se disse perseguido por um grupo, sem especificar quem.
Para analistas políticos e especialistas em questões raciais e de gênero ouvidos pela BBC News Brasil, o episódio dá combustível para os críticos das pautas identitárias atacarem o governo petista e evidencia como o machismo estrutural e institucional também está presente em governos de esquerda.
O impacto negativo para a gestão Lula é alimentado pelas suspeitas de que as denúncias de assédio contra Franco teriam circulado em seu alto escalão ainda em 2023.
O episódio gerou reação da senadora Damares Alves (Republicanos), ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos no governo Bolsonaro.
“Se algum outro ministro sabia e não denunciou, também é conivente com assédio sexual. Inadmissível esse homem se manter na pasta”, criticou, em vídeo divulgado na quinta-feira (5/9), quando o caso veio à tona.
As acusações foram confirmadas naquele dia pela organização Me Too Brasil, após serem reveladas pelo portal Metrópoles.
Já na tarde desta sexta-feira (6), a professora Isabel Rodrigues utilizou sua rede social para publicar um vídeo em que narra ter sido vítima de Almeida, em 2019.
De acordo com ela, Almeida, que na época ainda não era ministro, teria colocado as mãos em suas partes íntimas durante um almoço com outras pessoas.
Foi a primeira denúncia pública feita por alguém que mostrou nome e rosto contra o ministro.
“Eu acredito que foram muitas”, disse Isabel sobre outras possíveis vítimas.
Para o cientista político Creomar de Souza, fundador da consultoria política Dharma, a rapidez com que Lula reagiu às denúncias após o caso se tornar público revela a gravidade da crise: “Uma bomba”.
Ele lembra que a separação do antigo ministério comandando pela Damares Alves em quatro pastas – Direitos Humanos, Igualdade Racial, Povos Indígenas e Mulheres – foi uma prioridade do governo.
“E a escolha do Silvio e da Anielle vem com um elemento muito simbólico, que grupos de esquerda costumam gostar muito. O Silvio por toda a intelectualidade, a questão do conceito do racismo estrutural, que passou a ser muito utilizado [após seu livro]. E a Anielle por toda essa simbologia da luta para encontrar os culpados daquele crime terrível que foi o assassinato da irmã dela [a vereadora Marielle Franco, morta em 2018]”, afirma Souza.
“E, de repente, a gente tem ela sendo vítima de assédio sexual pelo ministro que era a referência de direitos humanos. É uma crise que machuca [o governo], até porque ela [Anielle] ficou calada para preservar o governo. E ainda há os questionamentos se outros ministros sabiam e não agiram”, acrescenta.
Na avaliação de Creomar de Souza, o episódio tem um impacto negativo para além do governo, podendo alimentar o racismo que já existe na sociedade brasileira.
“Esse é um país racista. E, em determinado sentido, para pessoas pretas, negras, é um desafio a ascensão social, a chegada no lugar de destaque. E essas pessoas [negras] sempre correm o risco de que o erro de um indivíduo [que chega a essa posição de destaque] seja considerado o erro de todas elas”, analisa.
Crise mostra que governos de esquerda não fogem ao machismo institucional, dizem professoras
Para a socióloga Mariana Selister Gomes, coordenadora do grupo de pesquisa em Gênero, Interseccionalidade e Direitos Humanos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), o episódio teve “um impacto negativo muito grande”.
“Tanto para o governo, quanto para nós, ativistas e pesquisadores, que lutam por essas causas dos direitos humanos, dos direitos das mulheres, da luta de antirracista”, aponta a pesquisadora.
Por outro lado, ela vê o episódio como oportunidade para o governo intensificar a abordagem “interseccional” dessas pautas.
Esse conceito, nascido no movimento feminista negro, evidencia como questões como desigualdade social, racismo e o machismo estão interligados e se reforçam.
“Se não tiver uma perspectiva interseccional [dessas questões], é possível que um homem negro tenha uma grande luta contra o racismo e seja um machista. Assim como a gente tem casos de mulheres brancas feministas que são racistas”, analisa.
Na sua avaliação, uma possível demora na revelação dos supostos abusos dentro do governo refletiriam “o machismo institucional”, que tende a descredibilizar vítimas e desencorajar as denúncias.
Ela lembra que muitas vezes as mulheres têm dificuldade em provar o assédio, e as instituições não costumam ter instâncias preparadas para lidar com esse tipo de apuração.
“Que bom que o movimento Me Too, da sociedade civil, teve esse papel de denúncia, que a mídia teve seu papel de denúncia. E que péssimo se alguns órgãos do governo já estavam sabendo e estavam abafando, porque isso refletiria a força desse machismo institucional, que pode estar presente até mesmo dentro de um governo de esquerda que se propõe a combater o próprio machismo”, lamenta.
Para a cientista política Flávia Biroli, professora da Universidade de Brasília (UnB), o episódio joga luz sobre o machismo estrutural nos espaços de poder, que ainda são majoritariamente masculinos e favorecem situações de assédio.
“Se espera que um governo de esquerda, comprometido com os direitos humanos e com pautas de igualdade e de diversidade, seja uma exceção. O que histórias como essas revelam é que há algo que está mais embaixo. Há uma dimensão sistêmica estrutural de relações de poder, que historicamente foram configuradas como relações em que os homens exercem poder sobre as mulheres”, afirma.
“Esse exercício de poder envolve a possibilidade de se avançar sobre o corpo de uma outra pessoa — nesse caso, das mulheres”, continua.
Na sua leitura, o que há de diferente na atualidade é a crescente presença de mulheres nos espaços de poder políticos e econômicos, o que favorece que as denúncias venham à tona em algum momento.
Para Biroli, seria difícil para o governo agir a partir de eventuais denúncias informais que tenham circulado antes.
Agora que denúncias foram formalizadas, a professora diz que o governo precisa agir a partir das evidências de assédio, que ganham força na medida em que há mais de uma denúncia.
“É muito difícil comprovar assédio. É raro termos vídeos, registros que comprovem. Então, tem sido muito relevante nesses casos quando há um acúmulo de denúncias”, argumenta.
Se a atuação do governo antes de o caso se tornar público é alvo de controvérsia, as professoras consideram positiva a reação de Lula após a revelação do caso, com a rápida demissão de Almeida.
Lula também se manifestou de forma incisiva mais cedo.
Em entrevista à Rádio Difusora de Goiânia, onde ele estava na manhã de sexta-feira (6/7), o presidente destacou a prioridade de sua gestão no combate à violência contra mulheres e afirmou que “alguém que pratica assédio não vai ficar no governo”.
O presidente disse também que é preciso dar direito a quem tiver que se defender, admitindo a “presunção da inocência”, e anunciou que colocaria a Polícia Federal, a Comissão de Ética da Presidência da República e o Ministério Público Federal para investigar o caso.
Na avaliação de Gomes, a foto postada pela primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja, beijando a testa de Anielle Franco ainda na noite de quinta-feira (5/7) também foi positiva ao passar uma mensagem de proteção para a ministra.
A imagem, porém, gerou críticas no movimento feminista negro, por sua conotação maternal, de uma mulher branca (Janja) sobre uma mulher negra (Franco).
BBC