Fotos: Marcus Teles
Gleycielli Guató e Terezinha Pantaneira são as protagonistas do curta que deve estrear no fim do ano, em uma obra sobre acessibilidade, ancestralidade e o poder da arte que cura
Em uma rua de terra no bairro Jardim Monte Alegre, em Campo Grande, o movimento das câmeras anunciou o início de uma travessia: o curta-metragem de ficção com elementos documentais “A Trovadora e a Poeta” acaba de ter suas gravações concluídas. O filme, rodado na primeira quinzena de outubro, é um encontro potente entre duas mulheres reais e suas histórias: Terezinha Pantaneira, trovadora popular e cadeirante de 76 anos, e Gleycielle Nonato Guató, poeta indígena da etnia Guató.
Durante cinco dias, uma casa em um conjunto habitacional se transformou no cenário onde as fronteiras entre a encenação e a vida se tornaram quase invisíveis, conforme conta o diretor e corroteirista Marcus Teles. “A minha função como diretor foi mais a de escutar do que conduzir — criar um espaço de confiança onde Terezinha e Gleycielle pudessem se expressar com verdade,” explica.
O roteiro, escrito pelas próprias protagonistas ao lado de Teles, acompanha o encontro dessas duas mulheres em seus cotidianos: Terezinha, que luta pela dignidade diante das barreiras da cidade para pessoas com deficiência, e Gleycielle, que busca se afirmar como artista em meio à dureza da vida urbana. Entre as duas, nasce uma amizade improvável, tecida pela poesia, pelo afeto e pela força de continuar criando.
Estreia e Reinvenção aos 76 Anos
Aos 76 anos, a ex-funcionária pública e trovadora Terezinha faz sua estreia no cinema, marcando um novo capítulo de sua história de lutas e reinvenções. “Eu sou da juventude de 60, uma geração que revolucionou o mundo. Sempre fui de buscar novos valores,” afirma. Sua personagem no filme carrega uma mensagem clara sobre a invisibilidade e a falta de acessibilidade para pessoas com deficiência, uma realidade que ela percebeu após passar a usar cadeira de rodas, depois da Covid. “A acessibilidade quase não existe — e essa realidade precisa mudar. O cinema é uma forma poderosa de dizer isso.”
O filme também marca a estreia de Terezinha como roteirista e atriz, algo que o diretor Marcus Teles considera profundamente inspirador.
Ancestralidade e Resistência Indígena
Gleycielle Nonato Guató, que interpreta Lucila – personagem inspirada em si mesma –, também assina o roteiro. A poeta indígena se vê na personagem que já trabalhou em terminais e vendeu salgados na capital. “Nunca imaginei que aquela menina que sonhava em estudar e escrever estaria hoje fazendo poesia dentro do cinema,” compartilha.
Para Gleycielle, o filme é uma homenagem a “todas as mulheres simples que têm dentro delas uma poeta”, e a poesia é o fio que une as protagonistas. A água e o rio, elementos centrais na narrativa, simbolizam a ancestralidade Guató — o “povo da água” —, o fluxo da vida, a memória e a cura. “Eu sou banhada pelas águas do Taquari. O rio é esperança e também destruição, é cura e é memória,” reflete Gleycielle, destacando o ritual de cura presente na obra.
O Poder Curativo da Delicadeza
O diretor Marcus Teles aponta que a convivência entre as protagonistas é o coração do filme, um espelho de troca de força e ternura. “Terezinha traz uma sabedoria antiga e uma sensibilidade enorme. Já Gleycielle carrega a potência da juventude e da arte como resistência,” pontua.

O curta conta ainda com a participação especial do ator Breno Moroni, em seu 99º filme. Financiado pela PNAB (Política Nacional Aldir Blanc) através da Fundac (Fundação Municipal de Cultura), o projeto se revela como um rio que corre entre tempos e corpos.
“Acredito que a delicadeza também é uma forma de resistência,” finaliza Marcus Teles. “O filme entende que a luta e a ternura nascem uma da outra. A poesia não é fuga — é enfrentamento. ‘A Trovadora e a Poeta’ é, no fundo, um rio. Ele resiste porque passa, e passa porque resiste.” A estreia do curta está prevista para o fim do ano.





