Receber a notícia de que um familiar ou um amigo querido foi diagnosticado com uma doença grave nunca é fácil — e a relação que desenvolvemos com essas pessoas num momento tão delicado pode afetar diretamente o bem-estar delas, apontam especialistas.
Isso vale para pacientes com câncer, mas também para aqueles que estão com outros quadros graves, que incluem doenças agudas (infarto, AVC…) ou crônicas (esclerose múltipla, asma, problemas cardíacos…). Todas essas condições representam alguma ameaça à continuidade da vida.
Muitas vezes, frases ditas em visitas e conversas informais com a melhor das intenções trazem mais prejuízos que benefícios, segundo profissionais da saúde ouvidos pela reportagem. São pessoas totalmente sem noção.
É o caso, por exemplo, de recomendações sobre religiosidade que não consideram as crenças individuais, aquelas que indicam tratamentos alternativos ou as comparações com outros pacientes que apresentam quadros parecidos — confira mais exemplos ao longo da reportagem.
‘Meu amigo teve essa mesma doença’ ou ‘E eu, que sofri com…’
A médica Ana Claudia Quintana Arantes, que se especializou em temas relacionados ao envelhecimento, aos cuidados paliativos e à morte, tem o hábito de visitar os pacientes em horários menos convencionais — ou, como ela mesmo define, “em horários impróprios”.
“Faço isso porque gosto de entrar em contato com os profissionais de enfermagem de todos os períodos, bem como com as visitas que estão no quarto”, diz ela.
“Nesses momentos, a gente se depara com as mais diversas situações. Há sempre aquele paciente que está cansado, abatido, teve um dia difícil, com notícias ruins, e tem aquela visita que chega tarde e não vai embora nunca.”
“Quanto mais grave a doença ou mais jovem o paciente, maiores são as chances de ele ouvir coisas absolutamente desnecessárias e inadequadas”, diz.
Arantes conta a história de uma paciente com câncer grave e que recebeu uma visita nada agradável.
“O horário de visitas terminava às 22h e a amiga dela chegou às 21h40. Entrou no quarto sem bater e logo disse: ‘Ah, você não sabe, acabei de vir do pilates. Nossa, a aula foi tão puxada… Pelo menos estou fortalecendo os meus músculos e tenho muito mais disposição pra fazer minha pós-graduação’.”
“A visitante nem perguntou se a amiga estava bem e não sabia falar de outra coisa que não fosse dela própria”, diz a médica.
Ao saber do pedido de entrevista, Arantes perguntou a alguns pacientes que ela acompanha quais são as frases que geram maior incômodo neles.
Além da falta de sensibilidade citada no exemplo anterior, alguns indivíduos mencionaram que são bombardeados com comparações descabidas.
“‘Nossa, você quebrou o fêmur? E eu, que já fraturei os dois de uma só vez?’; ‘Ah, você tem diabetes? E minha mãe, que tem diabetes, colesterol alto e hipertensão?’; ‘Caramba, você acabou de fazer cirurgia na vesícula? Tenho um conhecido que precisou operar a vesícula, a amígdala, a tireoide e o apêndice'”, exemplifica a médica.
As comparações, diz ela, “não chegam a invalidar a experiência do outro, mas mostram como quem está falando essas coisas não olha para o amigo ou familiar doente.”
“Não importa quantos ossos você quebrou. O que importa naquele momento é a dor daquela pessoa, não se alguém que você conhece passou por uma experiência pior ou melhor”, argumenta ela.
Arantes também desencoraja o uso de exemplos e histórias similares, independentemente do final que elas tiveram.
“Quando eu estava grávida, tive pressão alta. Daí pessoas próximas vieram me contar de casos de gestantes com o mesmo quadro que morreram, perderam o bebê, tiveram um AVC…”
“Para que isso? Você já está numa condição delicada e ouvir histórias assim não ajuda em nada.”
O médico Rodrigo Castilho, presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos, também avalia que trazer histórias semelhantes ou fazer comparações do tipo não trazem quaisquer benefícios.
“A gente não pode comparar. Cada ser humano é único e deve ser tratado como tal.”
‘Tenha fé’ ou ‘Pense positivo’
Outro ponto sensível nessas relações com indivíduos diagnosticados com doenças graves envolve a religião — ou ainda o que alguns podem chamar de uma certa positividade tóxica.
Não raro, durante visitas em hospitais ou mesmo em conversas pelo telefone, as pessoas fazem comentários baseados apenas nas próprias crenças — sem se preocupar com a fé do outro, apontam os especialistas.
Ao ser questionado sobre o assunto, Castilho se lembra de uma história que testemunhou num hospital.
“Um líder espiritual muito bem intencionado chegou para um paciente, que estava frágil, e perguntou se poderia fazer uma oração. Daí ele impôs as mãos e começou a dizer em voz alta que Deus iria libertar, tirar todo mal e fazer o sujeito levantar da cama. Terminada a reza, ele simplesmente foi embora.”
“Logo depois, fui conversar com esse paciente. Perguntei se estava bem e o que estava sentindo. Ele me respondeu que só pedia a Deus para que fosse embora sem sofrimento.”
Para o médico, exemplos como esse mostram uma falta de sintonia. Afinal, o líder religioso queria trazer algo positivo, um valor que ele considerava importante para aquele momento. No entanto, nesse exemplo, a pessoa que era alvo das rezas ansiava por algo completamente diferente.
A médica Tânia Maria Alves, coordenadora do Ambulatório de Luto do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, entende que o costume de falar de religião num contexto desses tem a ver com incertezas que abalam todos os lados dessas relações.
“Estar diante da morte é algo que traz muitas incertezas: quando ela vai ocorrer? O que acontece depois? O que será de mim?”, lista a psiquiatra. “São questões muito angustiantes. E uma forma que temos de lidar com elas é a religião. Cada sistema de crenças e doutrinas monta um corpo de respostas sobre o que são vida e morte.”
“Então esses comentários são tentativas de responder às angústias existenciais, para as quais não temos respostas definitivas”, complementa.
Arantes classifica a imposição de crenças e doutrinas a um paciente com uma doença grave como um “sequestro espiritual”.
“Isso é uma violência sem precedentes. Dizer coisas como ‘tenha fé’, ‘pense positivo’ ou ‘aceite determinada figura religiosa no seu coração’ traz uma percepção de que aquela pessoa é insuficiente e atravessa uma situação difícil por culpa própria ou falta de uma conexão com o espiritual”, afirma.
A médica sugere que, caso você queira transmitir algo de sua espiritualidade para alguém querido que está numa situação de ameaça à vida, procure fazer por contra própria, no particular, sem necessariamente falar disso para o resto do mundo.
“E, claro, você pode perguntar para o paciente se a religião é algo importante para ele. Daí, se houver abertura, é possível questionar se há alguma oração ou ritual que a pessoa se identifique e que gostaria de dizer ou fazer em companhia.”
“Essa é uma maneira respeitosa de se aproximar da dimensão da espiritualidade do outro”, emenda ela.
‘Você é um guerreiro’ ou ‘Vai vencer essa luta/batalha’
O uso de termos bélicos e militares é algo muito frequente na hora de falarmos sobre doenças graves.
É o caso, por exemplo, da “luta contra o câncer”, “do paciente que venceu a batalha contra as sequelas do AVC” ou “dos guerreiros que lidam diariamente com a esclerose múltipla”.
As fontes ouvidas pela BBC News Brasil avaliam que essas frases não fazem sentido no contexto da saúde — e na maioria das vezes, segundo eles, não estão alinhadas com as expectativas dos pacientes.
“Esses termos podem não estar em sintonia com o momento de vida ou os valores daquela pessoa e vão ser prejudiciais”, diz Castilho.
Seguindo essa lógica, um indivíduo que se curou do câncer — e, portanto, “venceu a guerra” — é celebrado como um vitorioso.
Mas como fica a situação de quem morreu em decorrência dessa enfermidade? Não parece justo considerar essa pessoa como uma “perdedora” ou “derrotada”…
Quando algum paciente ouve frases do tipo, Arantes tem a resposta na ponta da língua.
“Costumo sugerir que eles digam: ‘Olha, preciso de paz para atravessar essa fase. Eu não luto, não sou treinado para isso. Estou apenas vivendo. A guerra não é uma coisa boa para ninguém. Nem para mim, nem para o câncer. O que preciso agora é buscar uma maneira de conviver com o tumor, para que ele fique quietinho, sem me incomodar'”, diz.
‘Por que você não tenta esse outro tratamento?’
A comunicadora Giulia Gamba tem esclerose múltipla — uma condição que afeta a comunicação entre o cérebro e o corpo — e é diretora executiva da Crônicos do Dia a Dia — uma associação que reúne indivíduos com doenças crônicas.
Ela conta que pacientes são bombardeados com indicações de tratamentos vindos das mais variadas fontes.
“O que tentamos fazer nessas situações é adotar uma abordagem que não afasta quem faz a sugestão, mas, ao mesmo tempo, mostra a importância de seguir uma medicina baseada em evidências”, pondera ela.
“Temos diversos grupos de WhatsApp com pacientes e fazemos uma moderação acirrada, pois as pessoas sempre compartilham dicas e terapias que não são necessariamente as mais indicadas.”
Arantes observa que as sugestões de tratamento alternativos englobam coisas antigas — e supostamente “naturais” — até as tecnologias avançadas — que não necessariamente estão indicadas.
“Os pacientes recebem dicas que vão desde garrafadas, pílulas e óleos feitos de plantas até aparelhos de ressonância bioenergética que só estão disponíveis na Áustria”, exemplifica.
Arantes diz: “Sempre lembro aos meus pacientes que tudo com potencial de cura também possui um potencial de toxicidade. Além disso, esses outros tratamentos podem interagir com as medicações convencionais e afetar o funcionamento de órgãos.”
“Outra coisa importante: os médicos conhecem os tratamentos que prescrevem e sabem como lidar com os possíveis efeitos colaterais decorrentes da prescrição que fazem”, diz. “Já a sua vizinha ou sua tia geralmente não têm ideia do que fazer caso o tratamento que elas indicaram gere alguma complicação.”
‘Nossa, mas nem parece que você está doente…’
Gamba ainda lembra que nem toda doença tem sinais aparentes. Ao contar que tem esclerose múltipla, ela já ouviu: “Nossa, mas você parece tão normal…”
“Muitas pessoas entendem que alguém com esclerose múltipla, diabetes, dermatite atópica ou câncer deve se colocar num determinado lugar ou se encaixar em certas características”, observa ela. “É como se a nossa condição viesse à frente de qualquer outra característica.”
A diretora-executiva da CDD destaca que, no caso da esclerose múltipla, cerca de 80% dos pacientes convivem com a fadiga — um incômodo que na maioria das vezes não é tão aparente para quem está do lado de fora.
“E muita gente relativiza esses sintomas, como se eles não fossem reais”, diz Gamba.
‘Não fale de morte, isso atrai coisa ruim’
É inevitável que pessoas com doenças graves reflitam sobre o fim da vida — algo que pode incomodar quem está em outra situação.
“Quando o paciente chega nos momentos finais, é importante que ele comunique se gostaria de ter acesso a recursos para prolongar a vida ou não, onde deseja morrer, o que quer falar para as pessoas mais próximas…”, destaca Alves.
Castilho diz que “nossa sociedade ainda associa a morte com uma derrota, um fracasso”.
“Todos nós sabemos que, em determinado momento da vida, vai aparecer uma doença irreversível e progressiva. Esse é um processo natural, que acontece com 85% da população”, calcula o médico. Os outros 15% morrem de forma súbita.
Para o médico, é importante que, com a aproximação dessa fatídica despedida, os desejos da pessoa que vai partir estejam alinhadas com as expectativas de todos que a cercam.
“Se a morte fosse um fracasso, todos os nossos antepassados teriam falhado”, diz. “Ainda vemos a morte como algo pornográfico, que precisa ser escondido. Não levamos crianças aos velórios. Ao falar de morte, algumas pessoas batem na madeira para espantar o azar. Precisamos mudar isso em nossa sociedade.”
O que fazer (ou dizer) nessas situações?
Se existem certas frases que devem ser evitadas num contexto desses, os especialistas também apontam algumas outras coisas que podem significar um alento importante.
Os entrevistados pela BBC News Brasil foram unânimes em afirmar a necessidade de fazer uma escuta ativa.
“A pessoa precisa ouvir de fato para entender quais as reais necessidades que o amigo ou o familiar tem”, diz Gamba. “Muitas vezes, há uma busca por adivinhar o que o paciente precisa. Mas seria muito mais fácil perguntar diretamente para ele.”
Castilho concorda: “Nesses momentos, não basta ter simpatia. É preciso desenvolver a empatia, se colocar no lugar do outro e estar disponível para ouvir”.
Arantes destaca que esse apoio pode ser prático, ao auxiliar nas tarefas que ficaram para trás com uma internação, um procedimento ou uma rotina repleta de exames.
“Não adianta dizer coisas como ‘conta comigo’ ou ‘se precisar, é só me ligar’. Você pode propor uma ajuda real, segundo as necessidades da pessoa”, sugere.
“É o caso de fazer uma compra no supermercado, resolver coisas na farmácia, passar na padaria, dar caronas, jogar água nas plantas, preparar uma refeição para a família, levar o cachorro para passear…”, complementa a médica.
Segundo a especialista, ser propositivo é a melhor maneira de demonstrar suporte a quem está com uma doença grave.
“Se você não consegue encontrar um tempo para ajudar uma pessoa que ama e que está em apuros, há algo muito errado com sua agenda, com sua vida ou com sua capacidade de definir prioridades”, conclui.
Fonte: BBC