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A mãe que virou referência para famílias de jovens infratores

No aniversário de 18 anos de Flávio*, sua mãe, a faturista Thais Ribeiro de Souza, de 37, mandou fazer um bolo com o nome dele, colocou uma vela azul no topo e chamou os amigos e familiares para cantar parabéns. 

Do outro lado da tela de um computador, o jovem de cabeça raspada assistia à celebração por meio de uma chamada de vídeo, feliz em rever amigos pela primeira vez em seis meses. “Você está gordinho, hein, mano!”, brincou um deles.

Flávio passou as datas mais marcantes do último ano longe da família. Além do seu próprio aniversário, o Natal, Ano Novo e o Dia das Mães foram celebrados à distância. 

No último Réveillon, Thais passou a virada do ano na rua, em frente à janela do quarto onde o filho dorme. À meia noite, gritou: “Feliz Ano Novo, filho!”. Flávio, lá de dentro, respondeu: “Feliz Ano Novo, mãe!”. 

Eles não se abraçaram. Sequer se viram.

O adolescente está há nove meses cumprindo medida socioeducativa em uma das 97 unidades da Fundação Casa do Estado de São Paulo. “Mas parece que já se passaram dez anos”, diz a mãe. 

A internação do filho mudou completamente a vida de Thais, que também é mãe de uma menina de 2 anos. Mas, hoje, o vazio deixado pela ausência de Flávio dentro de casa transformou-se em ação. 

Assim como Flávio, a maior parte dos adolescentes atendidos pela Fundação Casa tem apenas a figura da mãe como representante da família. 

Segundo dados da própria instituição, 11% dos adolescentes e jovens atendidos sequer têm o nome do pai na certidão de nascimento.

Foi conhecendo outras mães na mesma realidade que Thaís percebeu que, além da dor, existia também um vácuo de informação e assistência. 

Por isso, hoje, ela coordena um grupo com mais de cem mães da Fundação Casa que se ajudam com orientação jurídica, apoio psicológico e até financeiro. 

“Muitas mães sequer têm o dinheiro da condução para visitar seus filhos”.

Sua atuação foi importante para a abertura de um canal de diálogo direto com Claudia Carletto, que assumiu a presidência da instituição há cerca de um mês.

“Esse contato com as mães é fundamental para a gente”, afirmou a presidente à BBC News Brasil.

‘Meu filho vai pagar pelo que fez’

Mas o início não foi fácil. O choque de entrar pela primeira vez em uma das unidades da Fundação Casa para visitar o filho é inesquecível, conta Thais. 

“Eu chorava e tremia tanto, que acharam que eu ia passar mal. Mas eu só precisava ver meu filho”, lembra.

“Eu dizia que, se um dia ele fosse preso, eu o abandonaria. Mas eu falava assim porque achava que isso nunca ia acontecer. Quando aconteceu, meu maior medo foi ele achar que eu de fato o deixaria sozinho”.

Em setembro do ano passado, quando ouviram a decisão do juiz, mãe e filho começaram a chorar. 

Ainda assim, Thais foi firme. “Eu disse ao juiz: ‘Meu filho vai pagar pelo que fez. A medida que vocês decidirem que ele deve cumprir, ele vai cumprir’.” 

Os adolescentes que cometem algum ato de infração podem ter que cumprir medidas que vão desde uma advertência até a privação de liberdade. A Flávio, coube essa última. 

“Foi por adrenalina”, revelaria ele mais tarde à mãe, tentando justificar o delito realizado. A divulgação da infração cometida por Flávio é vedada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Criado em 1990, o ECA estabelece os direitos e normas que protegem crianças e adolescentes no Brasil. E foi um dos objetos de estudo de Thais ao ver o filho na Fundação Casa. 

Carente de informação, ela foi atrás dos seus direitos. Descobriu assim, por exemplo, que podia fazer uma chamada de vídeo no dia do aniversário do filho. 

Um corrdor de chão cinza com portas azuis abertas. Em cada porta, um desenho diferente. Na primeira, um meino de calça jeans e moletom vermelho de costas escreve em uma parede branca. Na outra, o rosto de um leão todo colorido.
Imagem de uma das unidades da Fundação Casa

‘Por que você não me ouviu?’

Ao deixar Flávio no Centro de Atendimento Inicial e Provisório (CAI), primeiro local para onde o jovem infrator é levado, Thais pediu para ficar ao menos com o tênis do filho. “Eu tinha acabado de comprar”, conta. Mas seu pedido foi negado. 

“Então perguntei se poderia dar um abraço nele”. Autorizada a despedida, Thais abraçou o filho e, enquanto chorava, perguntou: “Por que você não me ouviu?”.

Temendo que Flávio se revoltasse por achar que a mãe cumpriria a promessa de abandoná-lo, Thaís esperou ansiosamente pelo primeiro dia de visita. 

“Saí de casa às 8h da manhã. A visita é a partir das 13h, mas eu não sabia se teria fila e queria entrar logo.”

Ao chegar, já havia uma mãe ali. “Foi ela quem me orientou, quem disse quais roupas eu poderia usar, quais eram as regras. Quem ajuda ali dentro são as próprias famílias”.

A presidente da Fundação Casa, Claudia Carletto, afirma que, via de regra, as famílias são acolhidas por assistentes sociais e psicólogos e orientadas. 

“O atendimento ao adolescente tem que acontecer concomitantemente com o atendimento à família. Senão, o cumprimento da medida socioeducativa fica pela metade”, diz Carletto. 

Ela explica que, além disso, há um canal online e uma ouvidoria para prestar auxílio e esclarecimentos às famílias.

Mas foi ali, com pouca informação até então, que Thais começou a perceber que o contato com outras mães poderia ser um trunfo. 

Da tremedeira e do choro do primeiro dia, Thais foi estudar o ECA, legislação brasileira que estabelece os direitos e deveres de menores de idade, para conhecer exatamente quais eram seus direitos ali dentro. 

“Eu sabia que podíamos fazer uma ligação de vídeo no dia do aniversário dele. É nosso direito, mas nem todo mundo sabe disso”, explica.

Da Febem à Fundação Casa

No ano passado, Flávio era um dos 11.556 adolescentes que cumpriam medidas socioeducativas em todo o país — sendo 4,2% meninas — de acordo com o levantamento anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania. 

O número representa 0,04% da população na faixa etária entre 12 e 21 anos, que é a faixa atendida pelo sistema socioeducativo brasileiro.

São quase 12 mil histórias de vida. Algumas, variações do mesmo tema. 

O pai de Flávio foi interno da Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor de São Paulo, a Febem, hoje transformada em Fundação Casa. 

Ele e Thais eram namorados na época, e foi em uma das visitas íntimas — permitidas na Febem e proibidas na Fundação Casa — que Thais engravidou de Flávio. 

“Na cabeça da menina de 19 anos que eu era na época, se eu engravidasse, ele mudaria”, conta ela. Mas isso não aconteceu. 

O pai de Flávio foi assassinado um ano depois de deixar a Febem, quando Flávio tinha 2 anos. “Criei ele sozinha”, conta a mãe.

Instituída em 1964, a Febem surgiu muito antes da criação do ECA, em 1990. Maus tratos, assassinatos e rebeliões marcaram a história da instituição, cuja nomenclatura foi alterada para Fundação Casa em 2006, e, junto com ela, houve uma reformulação do sistema.

“Na Febem, o pai do Flávio apanhava demais, e meu medo era que o mesmo acontecesse com o meu filho”, conta Thaís. 

“Mas, com o Flávio, tem sido diferente. Graças a Deus não tem acontecido nenhuma agressão.” 

Na última década, o número de adolescentes atendidos vem caindo, anualmente, em todo o país. 

No Estado de São Paulo, onde há o maior número de atendimentos, o pico foi em 2014, com 9.460 adolescentes. Hoje, esse número está em 4.533 em todo o Estado. Por isso, mais de 40 unidades já foram desativadas.

Depois vêm Minas Gerais (770), Rio de Janeiro (641) e Pernambuco (555) na lista de Estados com a maior quantidade de adolescentes atendidos. 

Em todos os casos, os números vêm caindo. Em novembro de 2017, segundo o relatório dos Direitos Humanos, 24.803 adolescentes estavam privados de liberdade em alguma instituição por todo o país. 

Em junho do ano passado, data em que o último levantamento nacional foi realizado, eram 11.556 adolescentes em todo o país. 

“Não conseguimos ainda entender a razão para essa diminuição”, afirma Claudia Carletto. 

“Existem especulações, mas não existe uma justificativa formal com dados e estudos”.

O próprio relatório do Ministério dos Direitos Humanos afirma que não há dados ainda que expliquem, com segurança, essa redução. Mas levanta algumas hipóteses que “devem ser investigadas”.

Dentre elas, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de agosto de 2020, que limitou em 100% a lotação das unidades socioeducativas em todo o país. 

A decisão concedeu habeas corpus para que muitos jovens e adolescentes de todo o país fossem liberados para cumprir outras medidas além da privação de liberdade.

Além disso, a partir de então, um adolescente só pode ir para uma unidade de medida socioeducativa se o local não estiver com a lotação máxima. 

Não havendo uma unidade com vagas próxima à casa da família, outras medidas, além da privação de liberdade, devem ser estabelecidas. 

Os impactos da pandemia de covid-19 também estão no rol de hipóteses levantadas a redução de adolescentes em instituições como a Fundação Casa. 

Embora os dados ainda sejam incipientes, houve redução de autuações policiais, por exemplo, no Rio Janeiro, depois que o STF proibiu operações nas favelas da cidade durante a pandemia. 

Também houve redução nos registros de roubos em geral em todo o país, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, o que poderia ter sido causado pelas medidas de restrição tomadas naquela época.

O sonho de ter uma moto

Nove meses se passaram desde que Flávio entrou de camburão na Fundação Casa.

Dentre os pedidos feitos pela mãe naquele dia, além do abraço, os policiais que acompanharam o procedimento também concordaram em não algemá-lo. O tênis foi devolvido para a mãe dias depois. 

Hoje, além do grupo no WhatsApp, Thais mantém uma conta no Instagram para falar sobre a realidade das famílias da Fundação. 

Com isso, algumas pessoas começaram a procurá-la para dar suporte jurídico e até financeiro às mães que precisam.

Seu sonho, diz, é criar cursos profissionalizantes para os meninos que saem da instituição. De acordo com Claudia Carletto, essa reintegração é um dos maiores desafios. 

“Lá dentro, ele não teve opção. Ele teve que assistir às aulas, teve que fazer exercícios, ficou limpo”, diz Claudia. 

“Só que, quando ele sai, ele volta exatamente para o lugar que o levou a entrar para a fundação. Então, nosso desafio gira em torno de como dar oportunidades para que ele possa ter outras perspectivas de futuro.”

De acordo com a presidente da instituição, a taxa de reincidência gira em torno de 22%. 

“Isso é algo que queremos enfrentar, assim como a taxa de adolescentes que saem da fundação e logo entram no sistema prisional, que gira em torno de 20%.”

O tempo de permanência em uma instituição socioeducativa nunca é predeterminado. Depende do cumprimento das medidas preestabelecidas ao ingressar, que, por sua vez, são revisadas a cada seis meses. No entanto, a permanência do adolescente ali não pode ultrapassar o período de três anos. 

Enquanto o filho não sai, Thais prepara a casa para a sua chegada. Com orgulho, ela mostra à reportagem o quarto do filho, um pequeno cômodo sobre uma laje, no fundo da pequena casa que ela tem no Campo Limpo, região periférica de São Paulo. 

“Na semana em que ele foi preso, a gente tinha acabado de fazer o forro”, conta ela. 

O guarda-roupa, assim como a prateleira e a mesinha de cabeceira são novos, nunca foram usados. 

“Aqui vai ser o banheiro dele”, diz ela, apontando para um pequeno espaço ao lado do quarto. “Já está bem diferente de quando ele saiu daqui”.

Além do quarto pronto, Thais comprou uma moto para o filho, depois dele contar que esse era o seu sonho. 

“A moto chega no mês que vem. Eu digo para ele que está tudo pronto aqui para quando ele sair”, afirma a mãe. “Se eu não apoiar meu filho, quem vai apoiá-lo?”.

*O nome do adolescente foi trocado para preservar sua identidade.

Reportagem BBC News Brasil

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